PROJETO FÉNIX
A demanda
Nos nossos dias, o conceito escola incorporou, talvez de forma imatura, um outro conceito que, em teoria, se compagina facilmente com o primeiro: sucesso. Assume-se que a escola pública tem de garantir o sucesso escolar de todos os seus alunos. O que antes ancorava no foro individual – alunos desinteressados, alunos com falta de capacidades, contextos familiares disruptivos – são hoje realidades que questionam a escola e às quais ela tem de dar resposta. O fracasso escolar deixou de focalizar o aluno e catapultou a escola enquanto comunidade de intervenção para o domínio da anormalidade social: um dos parâmetros mais relevantes na avaliação da escola colhe, precisamente, nos resultados dos alunos que a frequentam. Ultrapassada esta inocência que quase alheava a escola do insucesso – aceitava-se, pacificamente, que uns alunos progrediriam e outros fracassariam – institucionaliza-se, por assim dizer, que a escola é a responsável maior pelo insucesso dos seus alunos. Abundam as reflexões adjectivas que, à luz deste novo entendimento, procuram, num esforço de coerência nem sempre conseguido, equacionar um outro modelo organizativo e pedagógico da nova escola.
No nosso agrupamento, esta nova demanda tem envolvido toda a comunidade no encontrar de caminhos que atalhem junto do insucesso escolar. Validaram-se duas entradas de análise: uma centrada nos alunos e outra que implica os docentes. Focalizando os alunos, e apesar do nosso agrupamento apresentar níveis globais de sucesso escolar em linha com os indicadores nacionais, identificou-se uma percentagem não despicienda de alunos que transita de ano/ciclo revelando dificuldades em Português e/ou em Matemática – cerca de 20%. Desnecessário será dizer que, dada a transversalidade destas duas disciplinas, a evolução destes alunos no percurso escolar vai, progressivamente, capitalizando dificuldades acrescidas. Pormenorizando na análise, observa-se que o percurso escolar destes alunos, sobretudo desde a sua entrada no 2º ciclo até à conclusão do ensino básico, consolida esse perfil de insucesso. Pior, toda a comunidade facilmente interioriza este estigma das dificuldades: os encarregados de educação prontamente dizem que o seu educando sempre teve dificuldades a Português e/ou Matemática, os docentes validam essas dificuldades, nomeadamente, através das práticas avaliativas e os próprios alunos são os primeiros a reconhecerem-nas como intransponíveis. Isto é, a comunidade escolar ajuda o aluno a compreender – e justificar! – o seu insucesso.
Do lado dos docentes, foram várias as demandas encetadas no sentido de contrariar este insucesso aprendido: extensão da carga lectiva dos alunos recorrendo a aulas de apoio pedagógico acrescido, alocação de mais um docente no espaço aula – as assessorias pedagógicas, criação de serviços de tutoria, reforço no envolvimento dos serviços de psicologia escolar … No limite, subjaz aqui um conceito de “medicação” da prática pedagógica: o desinteresse e o aborrecimento passaram a configurar sintomas psicológicos disfuncionais, a curiosidade excessiva pode até ser entendida como hiperactividade ou défice de atenção. Alguns resultados positivos foram abonando em favor destas prescrições, mas prevaleceu uma necessidade seminal: era essencial encontrar um modelo pedagógico que contrariasse estas baixas expectativas de toda a comunidade escolar em relação às dificuldades evidenciadas pelos alunos. Dito de outra forma, e recuperando a metáfora médica, é melhor prevenir que remediar.
Constataram-se, assim, vários desfasamentos no currículo escolar dos alunos: uns ingressam nos novos ciclos sem que possuam os conhecimentos prévios facilitadores das novas aprendizagens, outros sentem que as aprendizagens propostas poderão ter ficado aquém das suas capacidades. Foi neste contexto que abarcámos com crença e determinação o Projecto Fénix: não só nos permite contrariar este diacronismo do insucesso aprendido, transversal a toda a comunidade, como possibilita, também, uma gestão curricular mais consequente na procura de níveis de aprendizagem que potencializem realizações no domínio do muito bom e mesmo da excelência. A premissa é contagiante: todos os alunos podem aprender mais e melhor.
O envolvimento
Focalizada agora no 8º ano de escolaridade, esta demanda de mais e melhor sucesso escolar tem colhido, desde o seu início no ano letivo de 2009/2010, o envolvimento dos vários agentes educativos. Na formação das quatro turmas-alvo, houve todo o cuidado em salvaguardar uma heterogeneidade relativa que sossegou alguns encarregados de educação mais reticentes: a informação prestada, nomeadamente através dos directores de turma, foi fundamental. Pelo lado dos alunos, o processo mereceu, desde logo, a anuência dos mesmos; foram esporádicos os casos de alunos que demonstraram estigma residual aquando da indicação para os Ninhos. Prontamente, os docentes envolvidos e o director de turma trataram de veicular junto do aluno e do encarregado de educação a mais-valia escolar associada ao projecto.
Observando o lado dos docentes, o projecto demorou na sua assunção por parte de todos. O entendimento inicial focalizava apenas as quatro turmas Fénix e, dentro destas, as duas disciplinas envolvidas na promoção do sucesso, Português e Matemática. Na verdade, o projecto envolve todas as turmas do ano de escolaridade – ao distribuirmos pelas quatro Fénix os alunos com mais dificuldades nas duas disciplinas citadas, criaram-se nas outras quatro turmas as condições para um desenvolvimento mais consequente do currículo. Os resultados, como veremos adiante, validam esta realidade. Atendendo ao currículo global, as quatro turmas Fénix exigiram por parte de todos os docentes dos respectivos conselhos de turma um desenvolvimento do programa prescrito diferenciado. A configuração das turmas pede mais tempo na obtenção dos resultados desejados: as dificuldades na compreensão e expressão linguística arrastam uma dificuldade transversal a todo o currículo, por exemplo. Os docentes das disciplinas não directamente contratualizadas na promoção do sucesso estão a abordar os programas prescritos de forma mais flexível, centrando-se, sobretudo, nos conteúdos que permitem as aprendizagens consideradas essenciais. Estas turmas implicam uma acção didáctica que, necessariamente, tem de se adequar aos contextos específicos, trabalhando na planificação, na acção e na avaliação. Os docentes têm de revisitar todas as variáveis que configuram o modelo de ensino e aprendizagem, procurando ajustar as respostas em função de um diagnóstico mais fino, de modo a melhorar os resultados. Este recontextualizar dos desafios da aprendizagem nos patamares específicos de cada turma Fénix implica o aprofundamento do trabalho em equipa, a necessária partilha do trabalho desenvolvido: o projecto curricular de cada turma constitui o instrumento orientador.
A metodologia
Todo o processo desenvolve-se em função de uma avaliação diagnóstica circunstanciada. Não bastou saber quem eram os alunos que revelavam dificuldades a Português e a Matemática. As dificuldades relevam sempre de realidades que podemos diferenciar. Uma dessas realidades - e determinante - diz-nos que o aluno tem dificuldades porque, muito simplesmente, não está na posse de conhecimentos que lhe permitam evoluir na aprendizagem. Com percursos escolares que, reiteradamente, ano após ano, inculcam no aluno este perfil de aluno com dificuldades, facilmente surge o desinteresse pela escola, o não acreditar em si. Esta é a realidade da quase totalidade dos alunos, cerca de cinquenta, que estão ou já passaram pelas turmas-ninho. É aqui que as metodologias adoptadas colhem usufruto. O desafio é desenvolver nestes alunos conhecimentos e ferramentas que lhes permitam reganhar o gosto de aprender, sentirem-se condóminos dum processo onde eles são a parte fundamental. O trabalho desenvolvido pelos docentes dos Ninhos parte sempre da realidade do aluno. Com turmas de oito alunos, é possível desenvolver um ensino mais individualizado, pese embora o desafio ser muito maior: estes alunos têm de percorrer um caminho de aprendizagem muito mais exigente e longo que aquele que é proposto aos seus colegas da turma nativa. Eis porque qualquer ideia de facilitismo associada ao trabalho desenvolvido tem de ser refutada. Quer os docentes, quer os alunos, aceitam este desafio acrescido de chegar aos patamares de aprendizagem regulados pelo curso do programa. Ao longo destes dois períodos, não tem sido fácil conjugar estes dois desafios: dar o programa – os alunos não vão ficar eternamente nos Ninhos – e promover aprendizagens consolidadas. As planificações são muito mais abrangentes – é preciso ir atrás -, as actividades propostas mais flexíveis, a avaliação, num primeiro momento, essencialmente formativa. Todavia, na avaliação sumativa, os alunos dos Ninhos fazem testes praticamente iguais aos dos seus colegas que estão na turma nativa: apenas, em algumas questões, se introduzem níveis de proficiência diferenciados. As reuniões semanais dos docentes directamente envolvidos no projecto são determinantes na preparação das actividades, propiciando partilhas enriquecedoras. A disciplina associada ao projecto criada na plataforma moodle também permite uma monitorização contínua de todo o trabalho desenvolvido.
Os resultados
Sendo este um projeto com um curso de quatro anos, os resultados pretendidos devem ser equacionados em função de todo este tempo de aprendizagem. Neste momento, já é possível validar indicadores que consubstanciam muito positivamente as finalidades do projecto:
- os alunos envolvidos nas turmas-ninho reganharam a sua auto-estima escolar: estão motivados para a aprendizagem, organizam-se de forma consequente, revelam uma evolução muito positiva na participação, são assíduos e pontuais;
- os conteúdos abordados nas turmas-ninho ficam, geralmente, consolidados;
- o trabalho pedagógico-didáctico na turma nativa permite aprendizagens mais abrangentes.
Numa análise mais pormenorizada dos resultados, importa observar realizações diferenciadas em função das demandas específicas do projecto.
Sendo Português e Matemática as disciplinas que, em função das dificuldades apresentadas, estiveram na origem da formação de turmas Fénix e turmas não Fénix, seria de esperar uma diferença mais acentuada nos níveis de sucesso. Verifica-se que as turmas não Fénix, ao ficarem sem alunos que, à partida, apresentavam um percurso escolar com dificuldades a Português e a Matemática, atingem, naturalmente, um nível de sucesso superior aos das turmas Fénix, nomeadamente a Português. Mas, e aqui reside o lado mais gratificante do projeto, as turmas Fénix, fruto das condições de aprendizagem que envolvem os alunos com dificuldades – cerca de cinquenta num total de noventa e três – conseguem alcançar patamares de sucesso muito próximos das turmas não Fénix; se estes alunos que estão ou já estiveram nos Ninhos não beneficiassem deste projecto, certamente teríamos níveis de sucesso bem diferentes.
Os resultados dos alunos que frequentam os Ninhos demonstram o aspecto evolutivo que preside à filosofia do Projeto Fénix. Duas conclusões:
- os alunos que estão nos Ninhos sentem que as suas realizações são francamente positivas: deixaram de ser os alunos com dificuldades perdidos numa qualquer turma para encararem com optimismo a superação dessas mesmas dificuldades;
- regista-se uma significativa evolução dentro dos níveis de sucesso.
O sucesso referenciado nos Ninhos deve ser entendido à luz das progressões que os alunos têm vindo a alcançar, persistindo, ainda, dificuldades que, para serem superadas, implicam a permanência destes alunos nos Ninhos. Trabalhar, ao mesmo tempo, a falta de pré-requisitos fundamentais e o currículo prescrito, tudo isto, o mais das vezes, com alunos oriundos de contextos sócio-económicos que não nos asseguram nenhuma retaguarda evolutiva, implica uma permanência nos Ninhos mais prolongada. Precisamente por isso, todo o trabalho é desenvolvido numa lógica de ciclo.
Numa realidade docente tantas vezes eivada de práticas ancoradas em achismos prisioneiros de formações iniciais ou mesmo de representações do neoeduquês, nem sempre é fácil pôr em prática o sempiterno valor bíblico da partilha. Ora, pela sua génese, o Projeto Fénix desenvolve, seminalmente, esta ideia do trabalho em equipa, do fazer com porque só assim conseguimos ir para. A metodologia de trabalho desenvolvida pela equipa Fénix, cuja visibilidade extravasou as tradicionais reuniões semanais, conseguiu, num primeiro momento, despertar curiosidades que depois se sedimentaram em observações mais atentas e recolhas metodológicas. Num momento em que a realidade dos alunos cada vez exige mais de nós – a escola que transborda -, esta retaguarda do trabalho cooperativo ajuda a dar as respostas plurais que hoje nos são exigidas.
Focalizando uma observação mais de índole curricular, com este projeto o nosso agrupamento validou que é na diferenciação que conseguimos evoluir num sucesso escolar sustentado e motivador para todos os agentes envolvidos. Dos alunos, ressalta a evidência que o projeto lhes dá de acreditarem nas suas possibilidades. Pensando nos alunos com dificuldades acrescidas de evolução na aprendizagem, este projeto vem trazer-lhes um caminho onde eles podem acreditar – numa turma com vinte oito alunos, havendo dois que sempre têm negativa, por exemplo a Português e a Matemática, o mais natural é esses jovens não mais consigam encontrar o seu caminho para ao sucesso – e a escola mais não poderá fazer que ensinar-lhes o seu… insucesso. Dos mais de cinquenta alunos que ao longo destes dois anos trilharam esses outros caminhos de aprender – os Ninhos – ressalta, além do sucesso escolar alcançado, o reganhar da autoestima escolar, condição primeira para os alunos gostarem e quererem aprender. Paralelamente, são os próprios encarregados de educação que, ao verem como a escola se esforçou por uma diferenciação positiva dos seus educandos, são eles próprios a sentirem que também podem fazer melhor, também podem fazer diferente, sendo o diferente muito do que colhem na observação da forma como a escola soube diferenciar. Por último, são os próprios docentes que também passaram a acreditar que, diferenciando, é possível desenvolver um trabalho que, embora mais exigente, colhe na satisfação dos resultados alcançados.
A face mais relevante do projeto está na frase que o inspira - “Mais sucesso escolar”. Conjugando este propósito com toda a heterogeneidade dos nossos alunos, tal parecia difícil de concretizar… Todavia, hoje podemos dizer que é verdade, que com este projeto todos os alunos aprenderam e estão a aprender mais e melhor. Se na vertente do combate ao insucesso e ao abandono escolar as evidências já estão por demais relatadas, importa agora reiterar o seu contributo para a qualidade do sucesso encontrado. Decorrente da alocação dos alunos com mais dificuldades em turmas com uma homogeneidade relativa – e sobre essas se fez a aposta maior! – foi possível desenvolver todo um trabalho no reforço da qualidade do sucesso com as outras turmas. É muito gratificante observar os resultados destas turmas e ver que a maioria delas apresentam realizações com resultados assinaláveis – turmas em que nenhum aluno tira qualquer negativa e que a maioria dos alunos situa-se nos níveis de avaliação superiores. Este reencontrar a possibilidade de trabalhar a excelência sem prejudicar nem afrontar a heterogeneidade do nosso universo discente propicia professores mais motivados e menos stressados, uma cultura de exemplo tão necessária para quem vem atrás e o necessário acreditar dos encarregados de educação numa escola pública com qualidade.
Validado o envolvimento positivo que o projeto colhe juntos dos professores, aqui ficam algumas opiniões dos encarregados de educação e dos alunos sobre a forma como estão a vivenciar este Projecto. Eis alguns dos testemunhos recolhidos junto dos encarregados de educação:
“Quando soube que o meu filho ficou nesta turma confesso que fiquei muito triste, pois alguém me disse que era a turma dos alunos com muitas dificuldades. Neste momento estou muito contente, o meu filho, que nunca gostou muito da escola, está mais empenhado, trabalha com mais gosto, mas o mais importante é que ele detestava Matemática e agora já diz que é das disciplinas que mais gosta.”
“Sendo eu mãe de uma aluna com um aproveitamento muito bom, fiquei bastante revoltada quando verifiquei a turma em que tinham colocado a minha filha; com voltas e mais voltas, arrisquei. Estou muito satisfeita! Realmente, os bons alunos não são prejudicados, antes pelo contrário; naquelas disciplinas que considero mais importantes (LP e Mat) até são beneficiados, pois o número de alunos é muito pequeno.”
“Ainda bem que colocaram a minha filha nesta turma. Como ela é muito envergonhada, aqui com estes grupos pequenos (Ninhos), ela tem mais facilidade porque está muito próxima da professora e diz que já não tem vergonha de colocar as dúvidas (anteriormente tinha e, como não tem em casa quem ajude, permanecia com elas para sempre). Já não tem vergonha de dar a sua opinião, a professora está mais atenta porque são poucos alunos.”
“Sinto o meu filho muito interessado em vir para a escola, nunca mais disse que não conseguia perceber Matemática, diz que não quer sair dos “grupos pequenos”.”
As opiniões dos alunos também reforçam a nossa crença no Projecto:
“Este projeto é muito importante para os alunos com muitas dificuldades. Eu, por exemplo, sempre tive fraca avaliação a LP e Mat… Agora estou nos Ninhos e sinto que melhorei muito. Os professores, como têm um grupo pequeno, conseguem dar mais atenção, tiram as dúvidas com mais tempo, falam mais devagar.”
“Eu, quando fui colocada nesta turma, fiquei muito triste porque fui separada das minhas colegas de turma, mas neste momento acho que foi muito bom porque estou no Ninho de LP e reconheço que estou a recuperar muito das minhas dificuldades.”
“Apesar de ficar muito triste quando vim parar a esta turma porque me considerava uma aluna com muito bom aproveitamento, e as minhas amigas com aproveitamento semelhante ao meu foram para outra turma que me disseram que era só para os bons alunos, estou agora muito contente e vejo que não estou a ser prejudicada, antes pelo contrário, pois nas disciplinas de LP e Mat, que eu considero muito importantes para o meu futuro, estou num grupo muito pequeno, com poucas dificuldades. Temos (eu e meus pais) comparado o programa (testes e caderno) e verificamos que tudo é igual. Adoro a turma, até tenho orgulho em pertencer ao projeto!”
O coordenador do projeto e Coordenador do Departamento de Línguas- professor Martinho Afonso